Vários artistas se propõem a fazer quadrinizações
justamente porque leram a obra original e, encantados,
tiraram da experiência o desejo de compartilhar
com outros a possibilidade dessa viagem por meio de
sua arte, no caso, os quadrinhos. Outros têm uma
relação mais antiga com a obra, e ela, provavelmente,
faz parte de sua formação leitora. O fato é que
muitos quadrinistas alegram-se em saber que a quadrinização
desperta o interesse do leitor em conhecer
os clássicos e compartilham o seu processo criativo
para ajudar educadores e outros artistas e pesquisadores
a descobrir as principais “sacadas” da quadrinização.
É um depoimento valioso, que traz de uma
forma ou de outra a leitura de seu(sua) autor(a), seja
ele(a) roteirista, desenhista ou ambos.Sim, cada obra pode abrir caminhos para a exploração
em sala de aula, nas disciplinas de literatura,
claro, mas também com possibilidades transdisciplinares,
em que se envolvem conteúdos de
história, geografi a, artes e humanidades em geral.
Vamos conhecer alguns exemplos de como o
processo criativo dos artistas pode ser sedutor e
indicar caminhos para essa leitura compartilhada?
Um dos aspectos importantes da tradução do
ResponderExcluirliterário para os quadrinhos é a seleção das partes
do texto a quadrinizar, que, por si só, já
pode ser tomada como uma autoria do quadrinista.
No caso de Os Lusíadas (NESTI, 2006), por
exemplo, a seleção das partes mais emblemáticas
da obra de Camões contribuiu para o sucesso do
uso paradidático do álbum. Foram escolhidos os
episódios de Inês de Castro, Velho do Restelo,
Gigante Adamastor e Ilha dos Amores.
Um bom caminho para começar a leitura compartilhada
seria expor aos alunos a estrutura do poema
épico de Camões: cantos e partes, e fazê-los perceber
que o álbum em quadrinhos fez uma seleção
de partes a representar e sua posterior montagem.
O álbum pode ser usado nas disciplinas de literatura,
artes, história e geografi a, por exemplo,
explorando o estabelecimento da língua portuguesa
e outras temáticas importantes, como as grandes
navegações, a cartografi a e a visão de mundo
da época, as dinastias portuguesas, entre outros aspectos históricos e culturais.
A montagem também pode oferecer outro caminho
didático interessante: propor aos alunos a
leitura e posterior tradução para quadrinhos de
uma parte da obra. Para isso, os professores podem
escolher um trecho da obra original que não
tenha sido quadrinizado no álbum. Que tal.
A comparação entre duas quadrinizações de uma mesma
ResponderExcluirobra clássica pode ser uma grande aventura. Pode-se também
buscar a releitura de Lailson de Hollanda Cavalcanti
(2006), Lusíadas 2500, que traz a obra na íntegra em três
volumes, ambientada num futuro intergaláctico. Um bom
exemplo de adaptação criativa!
Mesmo o mais experiente e criativo desenhista
ResponderExcluirprecisa fazer uma pesquisa antes de iniciar o esboço
de sua quadrinização. A reunião de referências
visuais de vestuário, objetos de época
e locações demanda tempo e o seu resultado enriquece
bastante as informações complementares
que a quadrinização oferece ao leitor para a compreensão
da obra e de seu contexto de época.
Nas disciplinas de artes, são muitas as estratégias
pedagógicas para se aproveitar. Vamos
conhecê-las:a) Avaliar o traço e estilo do artista: é acadêmico
e realista? É mais caricato, próximo do
cartum? Ou está mais para o estilo dos quadrinhos
de super-heróis? Contém características do
mangá? Os cenários usam bem os recursos da
construção de ambientes? Analisar alguns elementos
plásticos como proporção, perspectiva,
linhas do horizonte e enquadramentos pode fornecer
dicas de como o artista usou a expressividade
dos quadrinhos para traduzir a obra original.
b) Discutir o processo criativo do quadrinista a
partir de entrevistas ou de conteúdos extra.
c) Produzir uma história em quadrinhos a partir
da leitura de trechos da obra original que
não foram adaptados na quadrinização adotada.
d) Buscar referências artísticas na obra em
quadrinhos. Por exemplo: referências de
Botticelli, Dore e Dalí na adaptação da Divina
Comédia de Dante (BAGNARIOL, BAGNARIOL,
2011). Referências do Modernismo na adaptação
de Macunaíma, de Mário de Andrade (ABU, DAN
X, 2016).
Diferenças
estilísticas
na forma de
representar a
luta na Guerra de
Troia, da Ilíada, de
Homero (fig 1), e
em Macbeth, de
Shakespeare (fig 2)
Referências à obra de Tarsila
do Amaral na quadrinização de
Macunaíma. (Fig 3), “Batizado
de Macunaíma” (1956) e “O
abaporu” (1928)
Na disciplina de história, os quadrinhos podem
ResponderExcluirser excelentes máquinas de viajar no tempo.
O professor tem à disposição boas HQs produzidas
atualmente, mas situadas em outro tempo e
espaço, em que é possível identifi car e reconhecer
o vestuário, a ambientação de época e a rica
pesquisa que o desenhista fez para representar o
período histórico. Além disso, o professor pode
avaliar a linguagem em relação à passagem
do tempo dentro da narrativa. Por exemplo,
observar como os quadrinhos representam a passagem
do tempo em que a história ocorre: número
de quadros por página, seleção dos episódios e
partes da obra efetivamente quadrinizadas.
Outra possibilidade é apresentar aos alunos
a história das mentalidades como área de
conhecimento, usando as adaptações dos clássicos
para entender as transformações da sociedade
ao lidar com temas como amor, morte,
erotismo ou poder, entre outros.
Pode-se também explorar a representação da
morte, da vida e de Deus pelos quadrinhos, investigando
como esses temas estão expressos nas
obras literárias. Exemplo: A morte de Ivan Ilitch,
de Tolstói, por Caeto Melo (2014). O artista usa
a engrenagem do tempo na espera da morte por
meio da quantidade de quadros empenhados na
passagem vagarosa e cada vez mais angustiante
do tempo em direção à morte.
Em Morte e vida Severina, poema de João
Cabral de Melo Neto, a banalização da morte na
trajetória de um retirante nordestino em direção
ao litoral ganha quadrinização de Miguel Falcão
(FALCÃO, 2005) e animação média-metragem,
ambas em preto e branco. Os temas levantados
pelo poema regionalista vão da exploração da terra
à reforma agrária, dos movimentos migratórios às
desigualdades sociais, da caracterização dos espaços
geográfi cos, em especial a caatinga e o litoral,
às questões socioculturais relacionadas à vida sertaneja.
O(A) leitor(a) pode observar como os artistas
conseguiram criar um subtexto ou uma narrativa
independente, motivados pelas metáforas do poema, mas capaz de, por si só, narrar.
Pode observar o estilo de cordel e a exploração
de texturas e sombreados na diversidade de
hachuras e tracejados usada pelo desenhista.
A releitura do texto poético pela linguagem dos
quadrinhos e pela animação pode oferecer uma
boa oportunidade de aprofundamento sobre as
especifi cidades de cada linguagem: literatura,
quadrinhos e cinema. Pode-se aproveitar para
buscar também a produção audiovisual de Zelito
Viana, para tevê (1971), do mesmo poema.
As quadrinizações podem ser grandes guias
ResponderExcluirpara a leitura compartilhada de textos clássicos.
Neste caso, os quadrinhos cumprem a função de
um livro paradidático e a escolha do título depende
da obra e do autor de interesse. Os educadores
podem avaliar os títulos disponíveis, conforme
alguns critérios, como o nível de aproximação
(ou não) dos quadrinhos com a obra literária,
suas opções estéticas, o lugar e a origem do autor
clássico e do quadrinista e o projeto de trabalho.
E mais: pode-se estudar um movimento literário
a partir dos quadrinhos, comparando diferentes quadrinizações de obras do Romantismo, por exemplo,
identifi cando aspectos em comum e formas de
representação dos ideais estéticos da época. Como
o indígena foi retratado nas diferentes quadrinizações
das obras de José de Alencar? Que referências
estéticas ou orientações antropológicas foram
utilizadas? Que recursos da linguagem foram empenhados
na construção de uma ideia do indígena
brasileiro romântico? Avalie os recursos da narrativa
em quadrinhos, como o foco narrativo (primeira ou
terceira pessoa) ou lugar do narrador, o estilo do
desenho para composição da personagem e os recursos
variados da linguagem quadrinítica.
No século XX, o Romantismo e os romances
ResponderExcluirfolhetinescos do século XIX, enredos já
testados e provados, eram o maior foco de
interesse das coleções. Autor do Romantismo
brasileiro, José de Alencar foi o mais
quadrinizado no século XX. Já no século
XXI, até então, é Machado de Assis o autor
com mais obras quadrinizadas. De 2002 a
2015, foram publicadas 24 quadrinizações
em 26 edições de suas obras. Algumas foram
adaptadas várias vezes: O alienista (4),
Dom Casmurro (3), Memórias póstumas de
Brás Cubas (3). Releituras diferentes de uma
mesma obra possibilitam a comparação
entre as formas de representação de cenas
da obra original e pode render um bom
aprofundamento nas discussões.
Seguindo a linha da tradição literária, os professores
ResponderExcluirpodem aproveitar para discutir questões
como originalidade e autoria. Afi nal,
a obra literária clássica tem a capacidade de falar
a sucessivas gerações e é bem provável que tenha
tido inúmeras releituras anteriores, possibilitando
também discutir a relação entre a obra e seus leitores
ao longo do tempo.
O artista contemporâneo que se propõe a quadrinizar
uma obra literária está, de certa forma, ganhando
notoriedade ao se inscrever no rol dos autores
que criam novas representações da obra para
serem usufruídas por sua geração, possibilitando a
renovação de seu sentido. No século XX, a autoria
de uma quadrinização era comumente ocultada em
favor do nome do autor da obra literária na capa.
Nos dias de hoje, a quadrinização é considerada uma
obra derivada, mas completamente original, e o
quadrinista é referendado como seu autor.
Outro caminho útil para sala de aula é procurar
entender como o quadrinista conseguiu desnudar
e traduzir aspectos ocultos da obra literária.
Para isso, é importante explorar a gramática
dos quadrinhos e as fi guras retóricas do texto,
a começar pela identifi cação da representação do narrador no texto original e nos quadrinhos.
Assim, por exemplo, os recordatórios costumam
ser reservados para o narrador em primeira e terceira
pessoa, mas outros recursos podem ser usados
para marcar voz e lugar do narrador. Para trabalhar
essa temática, o professor pode se debruçar
sobre a obra de Machado de Assis, que faz sempre uso inventivo da voz do narrador.
Há vários caminhos para a seleção de quadrinizações
para se trabalhar na escola, de preferência
partindo de uma visão transdisciplinar do currículo.
Pode ser uma boa ideia acompanhar as datas
comemorativas (efemérides) relacionadas a determinado(a)
autor(a), obra ou movimento literário. Por
exemplo, 2018 é o ano em que se comemoram os
200 anos da publicação do romance Frankenstein,
de Mary Shelley, que viria a se tornar um clássico da
literatura universal, com quase 1000 releituras no
cinema, no teatro e nos quadrinhos. A obra pode
ambientar refl exões importantes, como a vida, os
limites entre a ciência e a ética, a c omplexidade das
relações de poder entre criador e criatura, mas também
possibilitar a identifi cação dos costumes sociais
da época, paisagens, mobiliário e vestuário.
As releituras de obras literárias em quadrinhos
ResponderExcluiriluminam e divulgam grandes histórias e enredos e
popularizam e atualizam mitos literários fundantes
de nossa cultura, resultando em álbuns que favorecem
a formação do leitor literário. O resultado
estético próprio dessas quadrinizações pode
proporcionar uma experiência de leitura enriquecedora,
não apenas por popularizar ou aproximar leitores
das obras literárias, mas por aproximar leitores
de outros leitores e, especialmente, pelo prazer da
fruição estética que a linguagem dos quadrinhos,
assim como a linguagem da literatura, proporciona.
Práticas de leitura compartilhadas podem
ser bastante signifi cativas se valorizadas tanto quanto a leitura individual. Leitores em formação
podem tomar gosto pela leitura em função
do desejo de compartilhar seus sentimentos e
ideias a respeito das obras.
A mediação da visualidade faz das quadrinizações
uma proposta convidativa, capaz de apresentar
a possibilidade de diferentes níveis de leitura.
Esta pode ser uma viagem compartilhada por
todos nós em torno de nós mesmos, de como fomos
e somos, de como vivemos, envelhecemos e
morremos, mas especialmente, como nos eternizamos
através da literatura e dos quadrinhos, duas
linguagens com leituras distintas e, ao mesmo
tempo, complementares.