quarta-feira, 27 de junho de 2018

Vários artistas se propõem a fazer quadrinizações justamente porque leram a obra original e, encantados, tiraram da experiência o desejo de compartilhar com outros a possibilidade dessa viagem por meio de sua arte, no caso, os quadrinhos. Outros têm uma relação mais antiga com a obra, e ela, provavelmente, faz parte de sua formação leitora. O fato é que muitos quadrinistas alegram-se em saber que a quadrinização desperta o interesse do leitor em conhecer os clássicos e compartilham o seu processo criativo para ajudar educadores e outros artistas e pesquisadores a descobrir as principais “sacadas” da quadrinização. É um depoimento valioso, que traz de uma forma ou de outra a leitura de seu(sua) autor(a), seja ele(a) roteirista, desenhista ou ambos.Sim, cada obra pode abrir caminhos para a exploração em sala de aula, nas disciplinas de literatura, claro, mas também com possibilidades transdisciplinares, em que se envolvem conteúdos de história, geografi a, artes e humanidades em geral. Vamos conhecer alguns exemplos de como o processo criativo dos artistas pode ser sedutor e indicar caminhos para essa leitura compartilhada?

8 comentários:

  1. Um dos aspectos importantes da tradução do
    literário para os quadrinhos é a seleção das partes
    do texto a quadrinizar, que, por si só, já
    pode ser tomada como uma autoria do quadrinista.
    No caso de Os Lusíadas (NESTI, 2006), por
    exemplo, a seleção das partes mais emblemáticas
    da obra de Camões contribuiu para o sucesso do
    uso paradidático do álbum. Foram escolhidos os
    episódios de Inês de Castro, Velho do Restelo,
    Gigante Adamastor e Ilha dos Amores.
    Um bom caminho para começar a leitura compartilhada
    seria expor aos alunos a estrutura do poema
    épico de Camões: cantos e partes, e fazê-los perceber
    que o álbum em quadrinhos fez uma seleção
    de partes a representar e sua posterior montagem.
    O álbum pode ser usado nas disciplinas de literatura,
    artes, história e geografi a, por exemplo,
    explorando o estabelecimento da língua portuguesa
    e outras temáticas importantes, como as grandes
    navegações, a cartografi a e a visão de mundo
    da época, as dinastias portuguesas, entre outros aspectos históricos e culturais.
    A montagem também pode oferecer outro caminho
    didático interessante: propor aos alunos a
    leitura e posterior tradução para quadrinhos de
    uma parte da obra. Para isso, os professores podem
    escolher um trecho da obra original que não
    tenha sido quadrinizado no álbum. Que tal.

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  2. A comparação entre duas quadrinizações de uma mesma
    obra clássica pode ser uma grande aventura. Pode-se também
    buscar a releitura de Lailson de Hollanda Cavalcanti
    (2006), Lusíadas 2500, que traz a obra na íntegra em três
    volumes, ambientada num futuro intergaláctico. Um bom
    exemplo de adaptação criativa!

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  3. Mesmo o mais experiente e criativo desenhista
    precisa fazer uma pesquisa antes de iniciar o esboço
    de sua quadrinização. A reunião de referências
    visuais de vestuário, objetos de época
    e locações demanda tempo e o seu resultado enriquece
    bastante as informações complementares
    que a quadrinização oferece ao leitor para a compreensão
    da obra e de seu contexto de época.
    Nas disciplinas de artes, são muitas as estratégias
    pedagógicas para se aproveitar. Vamos
    conhecê-las:a) Avaliar o traço e estilo do artista: é acadêmico
    e realista? É mais caricato, próximo do
    cartum? Ou está mais para o estilo dos quadrinhos
    de super-heróis? Contém características do
    mangá? Os cenários usam bem os recursos da
    construção de ambientes? Analisar alguns elementos
    plásticos como proporção, perspectiva,
    linhas do horizonte e enquadramentos pode fornecer
    dicas de como o artista usou a expressividade
    dos quadrinhos para traduzir a obra original.
    b) Discutir o processo criativo do quadrinista a
    partir de entrevistas ou de conteúdos extra.
    c) Produzir uma história em quadrinhos a partir
    da leitura de trechos da obra original que
    não foram adaptados na quadrinização adotada.
    d) Buscar referências artísticas na obra em
    quadrinhos. Por exemplo: referências de
    Botticelli, Dore e Dalí na adaptação da Divina
    Comédia de Dante (BAGNARIOL, BAGNARIOL,
    2011). Referências do Modernismo na adaptação
    de Macunaíma, de Mário de Andrade (ABU, DAN
    X, 2016).
    Diferenças
    estilísticas
    na forma de
    representar a
    luta na Guerra de
    Troia, da Ilíada, de
    Homero (fig 1), e
    em Macbeth, de
    Shakespeare (fig 2)
    Referências à obra de Tarsila
    do Amaral na quadrinização de
    Macunaíma. (Fig 3), “Batizado
    de Macunaíma” (1956) e “O
    abaporu” (1928)

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  4. Na disciplina de história, os quadrinhos podem
    ser excelentes máquinas de viajar no tempo.
    O professor tem à disposição boas HQs produzidas
    atualmente, mas situadas em outro tempo e
    espaço, em que é possível identifi car e reconhecer
    o vestuário, a ambientação de época e a rica
    pesquisa que o desenhista fez para representar o
    período histórico. Além disso, o professor pode
    avaliar a linguagem em relação à passagem
    do tempo dentro da narrativa. Por exemplo,
    observar como os quadrinhos representam a passagem
    do tempo em que a história ocorre: número
    de quadros por página, seleção dos episódios e
    partes da obra efetivamente quadrinizadas.
    Outra possibilidade é apresentar aos alunos
    a história das mentalidades como área de
    conhecimento, usando as adaptações dos clássicos
    para entender as transformações da sociedade
    ao lidar com temas como amor, morte,
    erotismo ou poder, entre outros.
    Pode-se também explorar a representação da
    morte, da vida e de Deus pelos quadrinhos, investigando
    como esses temas estão expressos nas
    obras literárias. Exemplo: A morte de Ivan Ilitch,
    de Tolstói, por Caeto Melo (2014). O artista usa
    a engrenagem do tempo na espera da morte por
    meio da quantidade de quadros empenhados na
    passagem vagarosa e cada vez mais angustiante
    do tempo em direção à morte.
    Em Morte e vida Severina, poema de João
    Cabral de Melo Neto, a banalização da morte na
    trajetória de um retirante nordestino em direção
    ao litoral ganha quadrinização de Miguel Falcão
    (FALCÃO, 2005) e animação média-metragem,
    ambas em preto e branco. Os temas levantados
    pelo poema regionalista vão da exploração da terra
    à reforma agrária, dos movimentos migratórios às
    desigualdades sociais, da caracterização dos espaços
    geográfi cos, em especial a caatinga e o litoral,
    às questões socioculturais relacionadas à vida sertaneja.
    O(A) leitor(a) pode observar como os artistas
    conseguiram criar um subtexto ou uma narrativa
    independente, motivados pelas metáforas do poema, mas capaz de, por si só, narrar.
    Pode observar o estilo de cordel e a exploração
    de texturas e sombreados na diversidade de
    hachuras e tracejados usada pelo desenhista.
    A releitura do texto poético pela linguagem dos
    quadrinhos e pela animação pode oferecer uma
    boa oportunidade de aprofundamento sobre as
    especifi cidades de cada linguagem: literatura,
    quadrinhos e cinema. Pode-se aproveitar para
    buscar também a produção audiovisual de Zelito
    Viana, para tevê (1971), do mesmo poema.

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  5. As quadrinizações podem ser grandes guias
    para a leitura compartilhada de textos clássicos.
    Neste caso, os quadrinhos cumprem a função de
    um livro paradidático e a escolha do título depende
    da obra e do autor de interesse. Os educadores
    podem avaliar os títulos disponíveis, conforme
    alguns critérios, como o nível de aproximação
    (ou não) dos quadrinhos com a obra literária,
    suas opções estéticas, o lugar e a origem do autor
    clássico e do quadrinista e o projeto de trabalho.
    E mais: pode-se estudar um movimento literário
    a partir dos quadrinhos, comparando diferentes quadrinizações de obras do Romantismo, por exemplo,
    identifi cando aspectos em comum e formas de
    representação dos ideais estéticos da época. Como
    o indígena foi retratado nas diferentes quadrinizações
    das obras de José de Alencar? Que referências
    estéticas ou orientações antropológicas foram
    utilizadas? Que recursos da linguagem foram empenhados
    na construção de uma ideia do indígena
    brasileiro romântico? Avalie os recursos da narrativa
    em quadrinhos, como o foco narrativo (primeira ou
    terceira pessoa) ou lugar do narrador, o estilo do
    desenho para composição da personagem e os recursos
    variados da linguagem quadrinítica.

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  6. No século XX, o Romantismo e os romances
    folhetinescos do século XIX, enredos já
    testados e provados, eram o maior foco de
    interesse das coleções. Autor do Romantismo
    brasileiro, José de Alencar foi o mais
    quadrinizado no século XX. Já no século
    XXI, até então, é Machado de Assis o autor
    com mais obras quadrinizadas. De 2002 a
    2015, foram publicadas 24 quadrinizações
    em 26 edições de suas obras. Algumas foram
    adaptadas várias vezes: O alienista (4),
    Dom Casmurro (3), Memórias póstumas de
    Brás Cubas (3). Releituras diferentes de uma
    mesma obra possibilitam a comparação
    entre as formas de representação de cenas
    da obra original e pode render um bom
    aprofundamento nas discussões.

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  7. Seguindo a linha da tradição literária, os professores
    podem aproveitar para discutir questões
    como originalidade e autoria. Afi nal,
    a obra literária clássica tem a capacidade de falar
    a sucessivas gerações e é bem provável que tenha
    tido inúmeras releituras anteriores, possibilitando
    também discutir a relação entre a obra e seus leitores
    ao longo do tempo.
    O artista contemporâneo que se propõe a quadrinizar
    uma obra literária está, de certa forma, ganhando
    notoriedade ao se inscrever no rol dos autores
    que criam novas representações da obra para
    serem usufruídas por sua geração, possibilitando a
    renovação de seu sentido. No século XX, a autoria
    de uma quadrinização era comumente ocultada em
    favor do nome do autor da obra literária na capa.
    Nos dias de hoje, a quadrinização é considerada uma
    obra derivada, mas completamente original, e o
    quadrinista é referendado como seu autor.
    Outro caminho útil para sala de aula é procurar
    entender como o quadrinista conseguiu desnudar
    e traduzir aspectos ocultos da obra literária.
    Para isso, é importante explorar a gramática
    dos quadrinhos e as fi guras retóricas do texto,
    a começar pela identifi cação da representação do narrador no texto original e nos quadrinhos.
    Assim, por exemplo, os recordatórios costumam
    ser reservados para o narrador em primeira e terceira
    pessoa, mas outros recursos podem ser usados
    para marcar voz e lugar do narrador. Para trabalhar
    essa temática, o professor pode se debruçar
    sobre a obra de Machado de Assis, que faz sempre uso inventivo da voz do narrador.
    Há vários caminhos para a seleção de quadrinizações
    para se trabalhar na escola, de preferência
    partindo de uma visão transdisciplinar do currículo.
    Pode ser uma boa ideia acompanhar as datas
    comemorativas (efemérides) relacionadas a determinado(a)
    autor(a), obra ou movimento literário. Por
    exemplo, 2018 é o ano em que se comemoram os
    200 anos da publicação do romance Frankenstein,
    de Mary Shelley, que viria a se tornar um clássico da
    literatura universal, com quase 1000 releituras no
    cinema, no teatro e nos quadrinhos. A obra pode
    ambientar refl exões importantes, como a vida, os
    limites entre a ciência e a ética, a c omplexidade das
    relações de poder entre criador e criatura, mas também
    possibilitar a identifi cação dos costumes sociais
    da época, paisagens, mobiliário e vestuário.

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  8. As releituras de obras literárias em quadrinhos
    iluminam e divulgam grandes histórias e enredos e
    popularizam e atualizam mitos literários fundantes
    de nossa cultura, resultando em álbuns que favorecem
    a formação do leitor literário. O resultado
    estético próprio dessas quadrinizações pode
    proporcionar uma experiência de leitura enriquecedora,
    não apenas por popularizar ou aproximar leitores
    das obras literárias, mas por aproximar leitores
    de outros leitores e, especialmente, pelo prazer da
    fruição estética que a linguagem dos quadrinhos,
    assim como a linguagem da literatura, proporciona.
    Práticas de leitura compartilhadas podem
    ser bastante signifi cativas se valorizadas tanto quanto a leitura individual. Leitores em formação
    podem tomar gosto pela leitura em função
    do desejo de compartilhar seus sentimentos e
    ideias a respeito das obras.
    A mediação da visualidade faz das quadrinizações
    uma proposta convidativa, capaz de apresentar
    a possibilidade de diferentes níveis de leitura.
    Esta pode ser uma viagem compartilhada por
    todos nós em torno de nós mesmos, de como fomos
    e somos, de como vivemos, envelhecemos e
    morremos, mas especialmente, como nos eternizamos
    através da literatura e dos quadrinhos, duas
    linguagens com leituras distintas e, ao mesmo
    tempo, complementares.

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